Brasil
A fábula da CPI
Acordo com a oposição limita as investigações sobre
os gastos milionários do governo em despesas sigilosas
Alexandre Oltramari e Otávio Cabral
Myrria |
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Os gastos com cartões corporativos do governo viraram motivo de piada em todos os lugares do Brasil, principalmente no Congresso Nacional, onde deve começar a funcionar ainda nesta semana uma CPI para investigar o caso. Fato 1: descobriu-se que os gastos com cartões aumentaram significativamente nos últimos anos. Fato 2: soube-se que boa parte desses gastos, 11,6 milhões de reais, foi feita por ecônomos da Presidência da República que cuidam das despesas institucionais do presidente Lula e de seus familiares. Fato 3: por questões de segurança, ninguém pode saber como, quando, onde e nem em que esse dinheiro foi aplicado. Fato 4: apesar do sigilo, está mais do que evidente que os cartões corporativos têm sido usados sem controle, inclusive para pagar despesas estranhas ao serviço público, com claros indícios de abusos. Conclusão: numa aparente demonstração de que nada tem a esconder, o governo apoiou a proposta da oposição de criar uma CPI para investigar os cartões. As assinaturas foram rapidamente colhidas, e a comissão só não foi instalada na semana passada porque houve um erro técnico no requerimento. Tudo certo? Não. O aparente empenho de parlamentares do governo e da oposição era apenas uma piada de faz-de-conta. Nos bastidores, combinou-se que as investigações vão apenas até o ponto em que não causem constrangimentos a ninguém. Será, portanto, uma CPI tão inconseqüente quanto as piadas e as charges sobre o assunto que ilustram estas páginas.
O acordo que viabilizou a criação da CPI maneta nasceu de uma conjunção de interesses comuns e se viabilizou debaixo de uma intensa troca de ameaças. Desde o início da crise, governo e oposição tentam chegar a um consenso sobre a melhor forma de apurar o caso. Na semana passada, o ponto de equilíbrio apareceu depois de uma conversa entre o ministro das Relações Institucionais, José Múcio Monteiro, e o presidente do PSDB, Sérgio Guerra. Ambos são pernambucanos e amigos de longa data, além de já terem sido aliados políticos no governo de Fernando Henrique Cardoso. Os dois concordaram que uma CPI ampla, incluindo a gestão FHC, como propôs o governo, e com poderes para acessar irrestritamente todos os documentos, poderia provocar situações de constrangimento para os dois presidentes, ainda que não existam sequer suspeitas de irregularidades envolvendo-os. Mesmo assim, milhares de servidores tiveram acesso aos cartões corporativos, e não seria surpresa se aparecessem despesas extravagantes com comida, roupas ou objetos pessoais de alguém ligado à família do atual ou do ex-presidente. Poderia ser somente um ato voluntarioso do servidor, mas não deixaria de constranger. Para evitar essa situação, combinaram que as investigações não atingiriam os gastos presidenciais. O espetáculo teria como protagonistas apenas funcionários públicos subalternos e ministros já enrolados no caso, como Orlando Silva, do Esporte, que hospedou a família no Copacabana Palace e utilizou o cartão para pagar a despesa, e Matilde Ribeiro, demitida depois de ter apresentado o cartão em um free shop. Ao final, seria uma CPI propositiva, que disciplinaria o uso dos cartões corporativos daqui em diante. O acordo foi selado em uma reunião entre o deputado tucano Carlos Sampaio, autor do requerimento de criação da comissão, e o líder do governo no Senado, Romero Jucá.
Paulo Vitale |
O ex-presidente Fernando Henrique diz que não tem nenhum receio das investigações em seu governo |
Havia, porém, um problema a ser resolvido. Esse tipo de acordo nem sempre resiste a uma nova revelação, ao ímpeto de um parlamentar descompromissado, ao atropelo dos fatos. Para evitar imprevistos, o governo decidiu nomear o presidente e o relator da CPI – respectivamente o senador Neuto De Conto (PMDB-SC) e o deputado Luiz Sérgio (PT-RJ) –, os dois cargos mais importantes, o que, em tese, lhe confere o controle absoluto dos passos da comissão. A oposição, porém, desconfiou das intenções oficiais, e tucanos que desconheciam o acordo ameaçaram se rebelar contra o compromisso de não investigar as despesas presidenciais. Foi quando surgiu o segundo ingrediente decisivo em busca da cumplicidade. Lideranças petistas espalharam que os arquivos do Palácio guardavam grande quantidade de munição contra os tucanos. Em uma reunião na presidência do Senado, Roseana Sarney, líder do governo no Congresso, foi explícita ao revelar que um motorista à disposição do ex-presidente Fernando Henrique teria gastado 45.000 reais com o cartão corporativo do governo em apenas um mês. Instada a provar o que dizia, a senadora revelou ter obtido a informação no Palácio do Planalto. Não foi só ela. Os recados, em tom de ameaça, foram transmitidos também pelo senador Romero Jucá. Ele garantiu que o governo dispõe de informações sobre gastos do ex-presidente FHC com vinhos caros, comidas finas, fraldas, óculos e até detalhes sobre a contratação supostamente irregular de uma chef de cozinha. As informações constam de um levantamento feito pela Casa Civil em que estão listados cerca de sessenta itens classificados como "despesas exóticas" do gabinete do presidente no governo passado.
Sergio Dutti/AE |
O presidente Lula é contra a divulgação dos gastos dos cartões corporativos de seu gabinete por questões de segurança |
São essas despesas secretas difundidas como ameaça pelas lideranças petistas contra os tucanos que, paradoxalmente, o governo petista quer manter sob sigilo. A principal preocupação do Palácio do Planalto é a divulgação dos gastos de um grupo de vinte servidores responsáveis pelo pagamento das despesas de Lula e de seus familiares. Para não esclarecer as dúvidas que existem, o governo argumenta que as despesas são sigilosas e que a divulgação colocaria em risco a segurança do presidente e de sua família. Ao todo, os pagamentos secretos realizados pelos dez ecônomos da Presidência mais gastadores somam 11,6 milhões de reais desde o início do governo, em 2003. Contrariando a principal utilidade dos cartões, que é facilitar a fiscalização dos gastos por meio de suas faturas, os assessores de Lula sacaram 1,7 milhão de reais em dinheiro vivo, dificultando seu rastreamento. Esses gastos, por isso, se tornaram uma imensa caixa-preta do governo. "Os cartões nunca foram usados para pagar despesas pessoais do presidente e de sua família. Há despesas realizadas para a manutenção da segurança do presidente e de sua família, o que é bem diferente", garante o ministro da Comunicação Social, Franklin Martins. Pode não ser bem assim.
Ed Ferreira/AE |
Romero Jucá e o tucano Carlos Sampaio: acordo para manietar a CPI |
VEJA teve acesso à prestação de contas de uma pequena parte das despesas bancadas pelos cartões de crédito corporativos que estão sob a responsabilidade dos dez ecônomos que atendem o presidente. Os dados estão arquivados na Secretaria de Administração da Presidência da República. São 42 pagamentos, realizados por quatro servidores palacianos entre 2003 e 2005, que somam 307 030,66 reais. De fato, como alega o Planalto, há gastos cuja divulgação pode colocar em risco a segurança do presidente. Um dos pagamentos, feito a uma locadora numa viagem de Lula a Manaus em abril de 2004, revela a quantidade de veículos blindados que integra uma comitiva presidencial. Outra fatura, paga em uma viagem de Lula a São Paulo em junho de 2006, mostra o número exato de seguranças do presidente que tomaram café-da-manhã e jantaram num hotel.
Thomate |
Mas as prestações de conta também revelam despesas que, justamente por ser secretas, podem ser interpretadas como exóticas – não se saberá isso até que se revelem as circunstâncias desses gastos, que podem muito bem ser perfeitamente justificáveis. Nos meses de setembro e dezembro de 2003, o ecônomo Clever Pereira Fialho, número 1 no ranking dos gastos palacianos, pagou 142.392,30 reais a uma locadora de veículos, a Full Time. Ele justificou o gasto como "diárias de veículos para atender viagens de familiares do presidente". Em 2004, a servidora Maria Emília Évora, oitava no ranking dos gastadores do Planalto, apresentou uma nota fiscal no valor de 52,30 reais. A despesa se refere ao creme para mãos Neutrogena, a um protetor labial da marca Nivea e a um gel para pálpebras sensíveis. Em sua prestação de contas, Maria Emília relatou que a despesa foi feita para "atender necessidades da primeira-dama, dona Marisa". Comprou-se, também, uma pomada antibiótica para o presidente. Um creme hidratante para a primeira-dama durante uma viagem oficial e um remédio de emergência para o presidente são despesas que nem mesmo na mais estóica das administrações podem ser consideradas luxo. A revelação desses gastos se justifica quando eles são tomados como amostragem do que é feito com o dinheiro público e quando se discute a razão de serem classificados como sigilosos.
Rose Brasil/ABR | Cristiano Mariz |
Neuto De Conto e Clever Fialho: o presidente da CPI e o ecônomo oficial |
As explicações para esses gastos dadas pelo governo são muito objetivas. A assessoria da Presidência esclareceu que, embora a legislação determine que familiares do presidente têm direito apenas à segurança, é autorizada a locação de carros, caso isso se faça necessário. Explicou também que, eventualmente, as compras de medicamentos para o presidente com os cartões corporativos são autorizadas quando não há o item em estoque na farmácia do serviço médico do Palácio do Planalto. Sobre os cosméticos, a assessoria informa que a compra, na verdade, foi solicitada pelo coordenador de saúde da Presidência, o médico Júnio Mário Pereira Gama, para atender a necessidades do presidente Lula, e não da primeira-dama.
Ivan Cabral |
Ainda assim, os gastos dos assessores palacianos, quando são secretos, têm potencial para causar embaraços. Um dos pagamentos aos quais VEJA teve acesso se refere a uma viagem de Lula a São Paulo no dia 29 de junho de 2004. A viagem ocorreu no Sucatão, o Boeing presidencial substituído três anos atrás pelo Aerolula. Havia 78 pessoas a bordo. Dois tipos de refeição foram servidos na viagem. O jantar dos viajantes foi comprado pela ecônoma Maria Emília Évora da empresa Gate Gourmet, do Rio de Janeiro – e pago em dinheiro vivo. Com caviar no cardápio, o jantar servido na cabine presidencial, ocupada por Lula e mais onze passageiros, custou 385 reais por pessoa. Já a refeição das outras 66 pessoas, entre tripulação e comitiva, ficou em 126 reais por cabeça. Sobre essas despesas, o Planalto informa que existe uma companhia contratada por licitação pública, desde 2000, com o objetivo de fornecer alimentação ao presidente e a sua comitiva. Apesar disso, explica, podem ocorrer gastos eventuais com o serviço sempre que o presidente viajar para um local onde a empresa contratada não tiver uma filial capaz de suprir as necessidades do avião presidencial. Também nesse caso não há estoicismo que justifique condenar o fato de um presidente da República se servir e aos convidados íntimos de um prato com caviar a 385 reais por cabeça durante uma viagem de trabalho.
Gilmar |
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso considerou arbitrária a decisão de investigar os gastos com cartão corporativo e contas do tipo B a partir de 1998, período em que ocupou a Presidência. Segundo ele, não há fato determinado que justifique a investigação por uma CPI. "Em primeiro lugar, não tenho nenhum problema. Mas, do ponto de vista da Constituição, é preciso haver um fato determinado", afirmou. Apesar de condenar a investigação, FHC diz não temê-la: "Essas coisas não passam diretamente pelo presidente. Certamente não tinha questionamento nem pelo TCU, nem pela imprensa nem por nenhum deputado". As questões centrais a ser travadas em torno dos gastos das altas autoridades são as mesmas que dizem respeito a todos os gastos do dinheiro público. A saber, quais são os limites? Quais são as regras? Quem controla os gastos? Quais são as punições para quem transgride? Quando essas questões tiverem respostas transparentes, a crise dos cartões desaparecerá tão rapidamente quanto surgiu.
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