3.9.07

A farra dos cartões

A evolução da tecnologia, especialmente no campo da informática, tem sido uma condição preciosa de aperfeiçoamento de métodos na administração pública. Por propiciar maior controle de gastos e a racionalização na aplicação de recursos, em geral as técnicas mais modernas de processamento de dados tendem a melhorar, substancialmente, a qualidade dos sistemas que, em última instância, resultarão na elevação de padrão dos serviços públicos. Um dos exemplos mais expressivos disso é o sistema de leilões eletrônicos para a contratação de serviços e obras públicas, onde os elementos básicos de qualidade e preço são expostos online e a transparência, no uso dos recursos do contribuinte, satisfaz melhor as exigências de impessoalidade, racionalidade e moralidade na administração pública.

Se aqui nos referimos a isso é para consignar o que tem representado uma infeliz exceção a essa regra: trata-se do uso da evolução tecnológica não para dar, mas sim para retirar a transparência dos gastos públicos - e nosso foco é, precisamente, o uso cada vez mais abusivo (para não dizer escandaloso) dos famigerados "cartões corporativos", cartões de crédito que abrigam a forma mais esconsa e descontrolada de despender dinheiro público, em amplos setores da administração pública. Os dados são, realmente, impressionantes. Levantamento feito pela assessoria de orçamento do DEM no Congresso Nacional - assunto de matéria de nossa edição de quinta-feira - mostra que até o dia 28 de agosto deste ano os gastos do governo federal, realizados por meio dos "cartões corporativos", já equivalem a R$ 53,1 milhões, o que representa cerca de 3,7 vezes o total gasto, pelo mesmo sistema, em 2004.

Veja-se a evolução: em 2004 o governo federal gastou, com "cartões corporativos", R$ 14.151.233,77; em 2005 gastou R$ 21.706.269,63; em 2006 gastou R$ 33.027.679,89; e em 2007 (até 28 de agosto) gastou R$ 53.111.386,73. Mas há um outro dado que causa muita estranheza. Habitualmente, o uso de cartões de crédito serve para efetuar pagamentos de compras de produtos ou de prestação de serviços. No caso dos "cartões corporativos" tem servido, fundamentalmente, para saques de dinheiro. Em 2007, por exemplo, dos R$ 53,1 milhões gastos, cerca de R$ 40,9 milhões foram sacados em espécie. Qual a razão disso? Se o cartão de crédito existe, justamente, para evitar o transporte de somas de dinheiro em espécie - o que, entre outras coisas, tem a ver com razões de segurança -, que sentido terá sacar (com o cartão) e transportar quantidades grandes de dinheiro vivo?

O setor que usou em maior volume o "cartão corporativo" foi o Ministério do Planejamento, com cerca de R$ 26,7 milhões, sendo R$ 24,9 milhões com saques em espécie. A justificativa desse Ministério são as despesas dos funcionários do IBGE, que participam desde o ano passado do censo agropecuário, que tem provocado grandes deslocamentos no Norte e no Nordeste. Mas o segundo campeão de gastos, pelo sistema, é a Presidência da República, com cerca de R$ 11,6 milhões, sendo R$ 8,8 milhões com saques em dinheiro. Esses gastos seriam oficialmente explicados, em parte, pelo aumento das despesas dos agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), por conta das operações durante os Jogos Pan-Americanos no Rio...

Não há como deixar de associar o aumento, que vai se tornando exponencial, do uso dos "cartões corporativos" na administração pública com a falta de transparência - e de controle, por parte da opinião pública - desses recursos públicos. Pois como haverá de saber a sociedade se, em meio a despesas que dizem respeito, efetivamente, ao trabalho de servidores públicos, não estarão embutidos gastos de interesse particular desses servidores, que, evidentemente, não competem aos contribuintes custear?

O problema com os "cartões corporativos" é a facilidade com que podem ser usados. Como diz o deputado Duarte Nogueira (PSDB-SP), seu uso "dispensa manual: se o servidor achar que a compra é urgente, é só passar e pronto. A fatura é debitada no bolso do contribuinte, que não sabe onde o dinheiro foi empregado".
Editorial Estadão

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