31.1.08

Planalto quer Matilde fora para não aumentar desgaste

Convocada ao Planalto, ministra ouve de colegas que situação é "ruim" e "grave"

Lula deve decidir hoje o que ocorrerá com a ministra; em nota, ela se pôs à disposição para "corrigir possíveis falhas no uso do cartão"

O Palácio do Planalto avalia que a melhor solução para o caso da ministra Matilde Ribeiro (Igualdade Racial), que fez uso irregular de cartões corporativos, é a sua saída do governo. Assessores do presidente Lula já até enviaram recados à ministra de que ela deveria colocar o cargo à disposição.
Segundo a Folha apurou, Lula deve tomar uma decisão sobre o destino da ministra hoje. Ele não quer prolongar a situação e deseja evitar mais desgastes para o governo.
Ontem, Matilde foi convocada a dar explicações para um grupo de cinco ministros no Planalto. A reunião, realizada por determinação do presidente, ocorreu na Casa Civil.
Questionada sobre sua situação depois da reunião, a assessoria da ministra divulgou a seguinte nota ontem à noite:
"A ministra Matilde Ribeiro colocou-se à disposição para prestar informações aos órgãos competentes, apurar e corrigir possíveis falhas no uso do cartão de pagamentos do governo federal. E dará continuidade ao trabalho iniciado em 2003, quando da criação da Seppir".
Durante o encontro, a ministra foi informada de que, na avaliação do governo, sua situação é "ruim e grave". Apesar de considerarem não ter havido má-fé de sua parte, os ministros disseram que ela não tem como "alegar publicamente que não sabia das regras nem podia ter feito o que fez".
Um dos ministros sugeriu indiretamente que sua saída do governo era a melhor opção sob o argumento de que o caso não teria tanta repercussão se ela não fosse ministra.
Em seguida, Matilde foi alertada que, apesar de não serem "gravíssimos", seus atos foram irregulares e ela acabará sendo convocada para falar no Senado. Para o governo, seria retomar a agenda legislativa com um fato negativo e colocar o Planalto na defensiva.
A reunião foi chefiada pela ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) e contou também com Franklin Martins (Comunicação), José Múcio Monteiro (Relações Institucionais), Jorge Hage (CGU) e Paulo Bernardo (Planejamento).
Matilde disse ter sido informada por sua equipe que não havia ilegalidade no uso dos cartões. Repetiu que o único caso que considerava irregular é o pagamento em um free shop (R$ 461,16) e que o valor foi devolvido. Em nenhum momento ela indicou ter se abatido com a pressão.
Matilde foi cobrada por dois outros tipos de gastos com o cartão corporativo, nos quais a CGU (Controladoria Geral da União) já detectou irregularidades: o aluguel de carros e o pagamento de restaurante.
No primeiro caso, foi dito a Matilde que ela deveria ter feito uma licitação para escolher quem deveria oferecer o serviço. Foi considerado elevado o gasto de mais de R$ 110 mil no período de um ano (dezembro de 2006 a novembro de 2007).
Sobre pagamento de restaurante, a ministra foi lembrada de que ela só pode custear as suas despesas. Matilde admitiu ter o usado o cartão para pagar refeições de outras pessoas. Em um ano, ela gastou com restaurante mais de R$ 5.000.
Se for comprovada irregularidade, os ministros disseram que ela deve ser obrigada a devolver o dinheiro, o que acontecerá também com o ministro Altemir Gregolin (Pesca). Ele pagou ao menos um almoço para uma comitiva chinesa numa churrascaria de Brasília. O caso do ministro Gregolin não é considerado tão grave pelo Planalto como o de Matilde.
Ontem, em evento em São Paulo, Lula disse que não comentaria o caso.

27.1.08

Perguntas ao telefone

Ugo Braga - Correio Brasiliense

Nobres propósitos podem jogar o brasileiro nos braços de um novo monopólio

Leio com certo espanto o noticiário acerca da compra da Brasil Telecom pela Oi/Telemar, cada vez mais iminente, pelo que se diz. Saltam do caso questões urgentes, interrogações profundas, de naturezas ética, moral e política. Não se engane, meu caro leitor, temos aqui algo bem maior que mero episódio empresarial. Nas negociações entabuladas dentro de gabinetes trancados a ferro, molda-se toda a relação de um grupo político-partidário com o exercício do poder e com as coisas do Estado. O dia-a-dia do cidadão comum tem tudo a ver com isso.

Antes de erguer o argumento, joguemos um pouco de luz sobre os fatos.

A Oi/Telemar, sabemos todos, pertence à sociedade formada entre a empreiteira Andrade Gutierrez e o grupo La Fonte, do ramo de shopping centers.

À guisa de aproximação com o governo, essa associação engendrou o artifício de injetar milhões de reais na firma de joguinhos de computador pertencente ao filho do presidente da República. Não era uma relação empresarial óbvia e rentável.

Do ponto de vista institucional, a Andrade Gutierrez é talvez a empresa mais próxima de Luiz Inácio Lula da Silva. Em 1990, depois de se ver covarde e involuntariamente envolvida na campanha presidencial do ano anterior, uma filha de Lula foi abrigada num belo apartamento em Paris. Passou seis meses justamente protegida da curiosidade alheia, algo sempre prejudicial à adolescente que era então. O imóvel pertencia a Marília, prima de Sérgio Andrade, dono da construtora.

Os anos passaram e a empreiteira tornou-se a maior financiadora da vitoriosa campanha reeleitoral de Lula. Em 2006, doou R$ 6,2 milhões ao PT. E outro R$ 1,2 milhão ao comitê eleitoral.

Paralelamente…
O mercado brasileiro de telecomunicações transfigurou-se ao longo da década passada. Era montado sobre monopólios estatais — estaduais no mercado de discagem direta, e nacional, no de longa distância. O serviço era caro, ruim e escasso. Reestruturado, ergueu-se sobre o pilar da competição privada. Melhorou, barateou e universalizou-se.

Para proteger o novo ambiente competitivo, o país construiu um manancial regulatório, banhado pela Lei Geral de Telecomunicações. Criaram-se impedimentos para que empresas estabelecidas impusessem barreiras às entrantes. E também para que um mesmo grupo controlasse mais de uma operadora, ainda que em regiões distintas.

Pois muito bem, para que a Oi/Telemar compre a Brasil Telecom é preciso que se mude parte do regulamento protetor do ambiente competitivo. O que se faz por meio de decreto presidencial. Luiz Inácio Lula da Silva tem diante de si, portanto, o dilema ético e moral de patrocinar um ato de ofício em benefício da empresa que abrigou uma filha sua numa hora difícil e tornou milionário outro seu filho, além de financiar sua própria campanha eleitoral.

Dado que o governo não só apóia como articula para viabilizar o negócio — financiando-lhe com recursos do BNDES e influenciando os fundos de pensão controladores do lado vendedor —, é possível que o presidente Lula se julgue desimpedido e acabe pondo sua assinatura embaixo do decreto. Quando o fizer, evocará o bem-estar da população. Professará sua crença na necessidade da criação de uma grande empresa brasileira, capaz de brigar com os gigantes internacionais de telecomunicações. Note que, sob o lustre oratório de nobres propósitos, se estará jogando o brasileiro ao domínio de um novo e grande monopólio privado. Talvez seja algo até pior que a antiga versão estatal.

Institucionalmente…
Mas a parte que realmente me interessa desse assunto é a da grande política. Porque o episódio configura no Brasil algo que alguns estudiosos chamam de "capitalismo de compadrio". É um tipo de sistema bastante rudimentar, no qual as ações do Estado privilegiam agências privadas próximas da estrutura político-partidária no poder.

Em sua vasta obra, o pensador italiano Norberto Bobbio formulou análises centradas em duas questões básicas: quem governa e como governa. Segundo ele, quando o governante não tem ou não consegue aplicar políticas de interesse público, ocorre uma aliança da alta burocracia com agentes privados, no intuito de se apropriar das três funções básicas do governo — arrecadar, normatizar e coagir. Bobbio não seria mais preciso se descrevesse o caso em tela.

Indivíduo ou partido nenhum é capaz de se relacionar igualmente com todos os cidadãos ou empresas de seu universo. Daí, resta claro que o compadrio, gerado pela ausência de políticas de interesse público, não só é injusto. Dissemina incertezas, custos e outras vilezas prejudicais à civilização.

26.1.08

O Foro de São Paulo não é uma fantasia!!

"Os petistas falam do Foro sem receio. Fizeram-no no vídeo preparado para o 3º Congresso do partido, no fim de agosto e início de setembro do ano passado.
Procure no YouTube. Parte do jornalismo brasileiro, entanto, pretende que tratar do assunto é dar asas a uma fantasia paranóica. Eis uma prática antiga da esquerda.
Ela sempre foi craque em ridicularizar a verdade,transformando-a numa caricatura, de modo que seus adversários intelectuais ou ideológicos
não encontrem senão a solidão e o desamparo
"

Vivemos os últimos dias de 2007 e os primeiros de 2008 sob o signo do terror. Setores da imprensa do Brasil e do mundo se deixaram seduzir pela pauta dos bandidos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Co-estrelaram a farsa protagonizada pelo presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que "libertou" duas reféns (há oitocentos!), os governos do conservador Nicolas Sarkozy, presidente da França, e do "progressista" Luiz Inácio Lula da Silva. Os maus herdeiros de Tocqueville (1805-1859), autor de Democracia na América, querem apenas resgatar do coração das trevas Ingrid Betancourt, uma cidadã que também tem nacionalidade francesa – e depois esquecer aquele canto amaldiçoado das... Américas. Já Marco Aurélio Garcia, assessor especial de Lula e representante brasileiro na "negociação", estava lá como um utopista. Ele é fundador de uma entidade internacional chamada Foro de São Paulo, que tem como sócios tanto o PT como as Farc. Existe, portanto, uma entidade em que essas duas organizações são parceiras, companheiras e partilham objetivos comuns.

O tal Foro foi criado em 1990 por Lula e pelo ditador Fidel Castro. Reúne partidos e grupos de esquerda e extrema esquerda da América Latina. Era a resposta local ao fim do comunismo – a URSS seria oficialmente extinta no ano seguinte. Há dois anos e meio, no aniversário de quinze anos da entidade, a reunião dos "companheiros" se deu no Brasil. E Lula discursou para a turma. Não acredite em mim, mas nele. A íntegra de sua fala está no endereço oficial www.info.planalto.gov.br. Clique no terceiro item da coluna à esquerda, "Discursos e entrevistas", e depois faça a procura por data: está lá, no dia 2 de julho de 2005.

Em sua fala, o presidente brasileiro:

- exalta a atuação de Marco Aurélio Garcia no Foro:

"O companheiro Marco Aurélio tem exercido uma função extraordinária nesse trabalho de consolidação daquilo que começamos em 1990";

- explicita as vinculações da organização com Chávez:

"O Chávez participou de um dos foros que fizemos em Havana. E graças a essa relação foi possível construirmos (...) a consolidação do que aconteceu na Venezuela, com o referendo que consagrou o Chávez como presidente da Venezuela";

- canta as conquistas internacionais da patota:

"E eu quero dizer para vocês que muito mais feliz eu fico quando tomo a informação, pelo Marco Aurélio ou pela imprensa, de que um companheiro do Foro de São Paulo foi eleito presidente da Assembléia, foi eleito prefeito de uma cidade, foi eleito deputado federal, senador (...)";

- expõe os tentáculos internos de que o Foro se serve:

"Vejam que os companheiros do Movimento Sem-Terra fizeram uma grande passeata em Brasília. (...) A passeata do Movimento Sem-Terra terminou em festa, porque nós fizemos um acordo entre o governo e o Movimento Sem-Terra";

- e reafirma a marcha rumo ao poder no continente e, se der, fora dele:

"Por isso, meus companheiros, minhas companheiras, saio daqui para Brasília com a consciência tranqüila de que esse filho nosso, de quinze anos de idade, chamado Foro de São Paulo, já adquiriu maturidade, já se transformou num adulto sábio. (...) Logo, logo, vamos ter que trazer os companheiros de países africanos para participarem do nosso movimento (...)."

Os petistas, como se vê, falam do Foro sem receio. Fizeram-no, por exemplo, no vídeo preparado para o 3º Congresso do partido, no fim de agosto e início de setembro do ano passado. Procure no YouTube. Parte do jornalismo brasileiro, no entanto, pretende que tratar do assunto é dar asas a uma fantasia paranóica. Eis uma prática antiga da esquerda. Ela sempre foi craque em ridicularizar a verdade, transformando-a numa caricatura, de modo que seus adversários intelectuais ou ideológicos não encontrem senão a solidão e o desamparo. Se você é do tipo que prefere anuir com o crime a ficar sozinho, acaba se comportando como um vapor barato do tráfico ideológico.

Já lembrei no blog a viagem que o escritor francês André Gide (1869-1951) fez à URSS em 1934, para participar do Primeiro Congresso dos Escritores. O evento era organizado por Jdanov, o poderoso ministro da Cultura. Intelectuais de todo o mundo estiveram lá. Só Gide denunciou o regime do ditador soviético Stalin (1879-1953), o que fez no livro Retour de l’URSS. Isso lhe valeu o ódio da esquerda internacional e uma espécie de ostracismo. André Malraux (1901-1976) foi um dos que silenciaram. Fez pior do que isso: afirmou que os Processos de Moscou, farsas jurídicas a que Stalin recorria para eliminar seus adversários (e até aliados), não maculavam a essência humanista do socialismo. De fato, o autor de A Condição Humana era um espião soviético. As esquerdas têm muitos heróis nascidos no solo fertilizado pelos cadáveres de seus adversários. Posso ficar só, mas repudio o crime.

Malograda a primeira expedição de Chávez e dos "observadores" para resgatar os reféns das Farc, o Itamaraty divulgou uma nota no dia 1º de janeiro lamentando o desfecho e concluía: "O governo brasileiro reitera seu apoio ao processo de paz na Colômbia, assim como a disposição de aprofundar sua contribuição a iniciativas de fortalecimento do diálogo interno naquele país". Traduzindo a linguagem diplomática: o Brasil reconhecia as Farc como "força beligerante" – uma reivindicação de Chávez –, e não como grupo terrorista. No dia 14 de janeiro, em seu programa de rádio, foi a vez de o próprio Lula afirmar: "Na medida em que as Farc se dispõem a libertar dois reféns, ela está dando (sic) um sinal de que é possível libertar mais. Portanto, o apelo que eu faço é que o governo colombiano e o meu amigo, o presidente (Álvaro) Uribe, mais os dirigentes das Farc se coloquem de acordo para que se possa (sic) libertar mais pessoas que estão seqüestradas". Os terroristas, que recorrem a assassinatos e seqüestros e vivem da proteção que oferecem ao narcotráfico, eram, assim, reconhecidos como expressão política legítima – agora não apenas no Foro de São Paulo, mas no âmbito da diplomacia e do governo brasileiros.

Isso tudo é irrelevante? Não é, não. Já publiquei no blog a lista dos partidos e organizações que integram o Foro: além do PT, do PC do B e das Farc, estão, entre outros, o também colombiano Exército de Libertação Nacional, o Partido Comunista de Cuba, o Partido Comunista do Chile, o Partido Comunista da Bolívia (aliado de Evo Morales), o Partido Comunista da Venezuela (engolido por Chávez), a Frente Sandinista de Libertação Nacional e o PRD mexicano (Partido da Revolução Democrática), do arruaceiro López Obrador, aquele que não aceita perder eleições.

A recusa em condenar as Farc, a defesa incondicional do governo de Hugo Chávez na Venezuela, o apoio às pantomimas de Evo Morales na Bolívia – mesmo e especialmente quando ele contraria interesses brasileiros – e de Rafael Correa no Equador e as relações sempre especiais com a tirania cubana fazem parte do alinhamento do governo do PT com este "Comintern" (Internacional Comunista) cucaracho, o Foro de São Paulo.

Ah, não. Não haverá uma revolução comunista liderada pelos petistas. É mais lucrativo operar uma "revolução" na telefonia, não é mesmo? Condescender com a hipótese do levante é uma forma de fazer uma caricatura do que vai acima. O que estou afirmando, e isto é inconteste, é que existe uma organização na América Latina, chamada Foro de São Paulo, a que pertencem o PT e as Farc, que coonesta grupos e governos que optaram pelo terror, pela ditadura ou por ambos. O que essa gente faz é chantagear a democracia, cobrando muito caro por aquilo a que temos direito de graça. E isso se dá, como sempre, sob o silêncio cúmplice e medroso dos democratas.

E que se note: por motivos óbvios, os petistas são mais decentes quando silenciam sobre os crimes das Farc do que quando fingem indignação em entrevistas.
Veja

Autópsia da corrupção

Relatório da Polícia Federal diz que fisiologismo político e desvio de dinheiro infestam órgãos públicos e empresas estatais

Policarpo Júnior

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Foto Sergio Lima/Folha Imagem

Maurício Marinho, diretor dos Correios, foi filmado recebendo propina e narrando como funcionava o esquema de corrupção na estatal. O caso detonou o escândalo do mensalão, que levou o Supremo Tribunal a processar quarenta pessoas. A Polícia Federal investigou e concluiu que o fisiologismo está disseminado em todas as áreas do governo. Os partidos usam os cargos públicos para desviar dinheiro e abastecer campanhas eleitorais


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Exclusivo on-line
Vídeo de Marinho recebendo dinheiro
Em maio de 2005, VEJA publicou uma reportagem revelando o monstro que se cria quando se misturam no mesmo ambiente interesses públicos, privados e políticos. Um diretor da ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos) foi flagrado em uma gravação de vídeo recebendo propina e narrando em detalhes o funcionamento de uma estrutura clandestina de arrecadação de dinheiro. As imagens correram o mundo e provocaram o maior escândalo político desde o impeachment do presidente Fernando Collor. O Congresso instaurou uma comissão parlamentar de inquérito e, a partir dela, desvendou-se uma enorme rede de corrupção envolvendo gente graúda do governo, parlamentares e empresários. O esquema, batizado de mensalão, arrecadava dinheiro em empresas públicas para subornar deputados. Quarenta pessoas estão sendo processadas por crimes de corrupção e formação de quadrilha. Agora, quase três anos depois, a Polícia Federal concluiu a investigação sobre a gênese do escândalo. Os Correios eram exatamente aquilo que as imagens mostraram – um covil usado pelos políticos para desviar dinheiro público mediante a indicação de pessoas para ocupar cargos estratégicos. Funcionava nos moldes de uma organização criminosa, com chefes, escalões de comando, contabilidade própria, ameaças, extorsões e pagamentos de propina.

VEJA teve acesso ao relatório final da Polícia Federal sobre o caso. O documento revela o poder de destruição de uma das piores pragas da política brasileira: o loteamento de cargos. Em 130 páginas, a Polícia Federal disseca, a partir dos Correios, a maneira como os políticos tomam de assalto empresas públicas para satisfazer interesses pessoais e partidários. O relatório ajuda a entender por que deputados e senadores, independentemente de credo ou ideologia, vivem numa guerrilha permanente para indicar seus afilhados para cargos no governo federal, estadual ou municipal. Fica evidente que a meta a ser perseguida é o binômio poder e dinheiro – principalmente dinheiro, que compra o poder. Maurício Marinho, o funcionário filmado recebendo propina, foi escolhido para ocupar o cargo pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), uma das catorze agremiações aliadas ao governo. Por sua mesa, em três anos, transitou boa parte dos negócios realizados pela companhia. A polícia, com a ajuda de auditores, constatou que os contratos assinados por Marinho e outros diretores dos Correios, em sua maioria, foram "cavilosamente fraudados". Há casos de licitações dirigidas, compras sem necessidade, conluio entre empresas e superfaturamento em índices inacreditáveis de 400%. Tudo isso envolvendo mais 8 bilhões de reais em recursos. Parte desse dinheiro, segundo a polícia, foi desviada dos cofres públicos para os bolsos dos corruptos e alimentou campanhas políticas.

Dida Sampaio
O ex-deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, foi indiciado por crime de formação de quadrilha. Foi dele a responsabilidade pela indicação dos funcionários que arrecadaram propina para o partido

As suspeitas sobre as verdadeiras motivações dos políticos em busca de cargos públicos sempre existiram no imaginário dos eleitores, mas essa é a primeira vez que ela se materializa de forma tão evidente. Os partidos estão no centro do que a polícia chama de "esquema criminoso" dos Correios. Dois deles foram apontados no relatório da polícia: o PTB e o PT, mas não está descartada a possibilidade do envolvimento de outras organizações, como o PMDB. No caso do PTB, ficou comprovado que o presidente do partido, o ex-deputado Roberto Jefferson, "realizou um verdadeiro loteamento" dos Correios para operar "fábricas de dinheiro". O esquema funcionava da seguinte maneira: para prestar serviços à estatal, a empresa interessada aceitava destinar um porcentual de seus ganhos ao partido, que variava de 3% a 5% de tudo o que recebesse. O acerto era feito diretamente com os representantes da agremiação. O grau de requinte chegava ao ponto de a quadrilha manter uma contabilidade on-line do dinheiro desviado. A polícia apreendeu no computador de um dos dirigentes petebistas uma planilha mostrando em detalhes como era cobrada a propina partidária. O arquivo, com o sugestivo nome de "conta corrente", mostrava o nome da empresa, o valor do contrato, o funcionário responsável pela cobrança, o porcentual do acerto e a freqüência do pagamento.

Em períodos de eleição, o PTB ainda exigia das companhias que fornecessem uma ajuda direta aos seus candidatos. Os empresários eram lembrados de que, para continuar desfrutando seus gordos contratos com os Correios, a vitória nas urnas era imprescindível. Cada um deles recebia um CD com a matriz do material de campanha dos candidatos do partido. Normalmente, eram pedidos de santinhos e camisetas com a foto do político e o nome do partido. "As solicitações de contribuições aos fornecedores da ECT por parte dos empregados dos Correios, membros da quadrilha, eram explícitas e algumas vezes chegavam à beira da extorsão. Além da entrega de dinheiro em troca de informações e de benefícios indevidos nos procedimentos administrativos de licitação, nas prorrogações de contratos, na repactuação de preços, os fornecedores da ECT também contribuíam diretamente para o partido nas campanhas eleitorais", descreve o relatório policial. Não se sabe quanto o PTB arrecadou nos Correios, mas as estimativas mais modestas falam em 10 milhões de reais. Roberto Jefferson e os dirigentes indicados pelo PTB foram indiciados por crime de formação de quadrilha, corrupção e fraude em licitações. O líder trabalhista ainda vai enfrentar outro processo. Quando explodiu o escândalo, o ex-deputado disse que estava sendo vítima de extorsão. Numa curiosa inversão de papéis, a falsa denúncia levou à prisão do consultor Arlindo Molina, que ficou detido durante nove dias, enquanto os corruptos permanecem livres até hoje. "Espero que o Ministério Público cumpra seu dever e acuse o ex-deputado por crime de denunciação caluniosa", diz Molina.

Paulo Liebert/AE
O PT, do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, mentor e chefe do mensalão, foi apontado como suspeito de participar da quadrilha que, junto com o PTB, saqueou os cofres dos Correios

As diretorias dos Correios foram divididas – ou "loteadas", como afirma a polícia – também entre os políticos do PT e do PMDB. O resultado das investigações mostrou que o método trabalhista não era exclusivo do partido. Segundo o relatório, as nomeações para os Correios e para outras empresas públicas obedeciam ao mesmo critério. Os parlamentares indicavam nomes afinados com seus interesses, que eram avalizados pelo então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e por Silvio Pereira, então secretário-geral do PT. Esses dois personagens, como se sabe hoje, foram os mentores do mensalão, o esquema clandestino de arrecadação de fundos do PT. O relatório mostra que o Partido dos Trabalhadores também deixou suas digitais em fraudes e desvios de dinheiro nos Correios. A Polícia Federal detectou graves irregularidades na área de tecnologia da estatal, como fraude em licitações e cobrança de propina. "Tais atos dizem respeito à possível atuação de uma quadrilha comandada por pessoas ligadas ao Partido dos Trabalhadores", descreve a polícia. No período investigado, entre 2003 e 2005, o setor foi comandado por Eduardo Medeiros, um petista abençoado por José Dirceu e Silvio Pereira. Há dois inquéritos na PF vasculhando exclusivamente a ação dos petistas.

Paulo Liebert/AE
Silvio Pereira, ex-secretário-geral do PT, fisgado no mensalão, saiu rindo à toa de uma condenação simbólica. Ele avalizava as indicações de cargos nos Correios

Um dos alvos de investigação federal citados no relatório é a empresa de computadores Novadata. No vídeo, Maurício Marinho contou que a companhia conseguiu uma série de benefícios nos Correios depois de fazer um "acerto" com a diretoria de tecnologia. Levantamentos feitos pela Controladoria-Geral da União e anexados ao inquérito mostraram que a Novadata conseguiu um reajuste inexplicável no valor de um de seus contratos e ainda venceu outra licitação, cujos critérios de escolha foram absolutamente irregulares. A empresa também foi poupada de multas por atraso na execução dos serviços. A Novadata pertence ao empresário Mauro Dutra, amigo e companheiro de pescaria do presidente Lula há mais de duas décadas. Dutra também exerce o papel de arrecadador extra-oficial de recursos para campanhas petistas e é dono de uma ONG que recebeu dinheiro público para treinar trabalhadores – e que prestava conta do serviço usando notas fiscais frias. "Apesar de ainda não ter sido cabalmente provado, Mauro Dutra é suspeito de ter feito acertos com servidores de pelo menos duas áreas dos Correios para vencer uma licitação e, também, para obter reajuste de 5,5 milhões no valor de um contrato", diz o relatório.

O escândalo, que nasceu com as revelações de Maurício Marinho e tragou, com a descoberta do mensalão, o que se supunha ainda existir de ética em alguns partidos políticos, expôs as vísceras do que há de pior na política brasileira. Mas, ao que parece, não serviu nem de lição. Na semana passada, em plena reunião ministerial – um evento tradicionalmente nobre e simbólico –, o presidente Lula aproveitou a presença do contingente de ministros para falar exatamente sobre distribuição de cargos. A chamada base aliada do governo, da qual ainda faz parte o PTB de Roberto Jefferson, vive ameaçando se rebelar se cargos e mais cargos não lhe forem imediatamente entregues. O fisiologismo não é uma invenção de Lula ou do PT. Ele faz parte de uma conveniente estratégia política usada por todos os presidentes que o antecederam. A diferença, agora, é que as negociações de cargos, por seu caráter pouco nobre e suas intenções nada explícitas, são escancaradas, sem nenhuma cerimônia. "O fisiologismo sempre existiu, mas Lula o levou ao paroxismo e ficou prisioneiro dele. Sem o mensalão, o governo só tem cargos e emendas para compor sua base de sustentação", analisa a cientista política Lucia Hippolito.

2008 é ano eleitoral. Mas isso, aparentemente, tem pouca relevância na discussão sobre cargos. Afinal, os interesses em colocar afilhados no governo seriam todos republicanos. Os políticos querem fazer nomeações porque acham que suas experiências de vida e seus partidos podem ajudar a melhorar o país. "O cargo é uma coisa simbólica, que serve para mostrar que se tem poder. Isso ajuda o deputado a implementar suas idéias em benefício da população", explica o deputado Mário Negromonte, líder do PP na Câmara, outro dos partidos da base aliada do governo. Maurício Marinho, Roberto Jefferson, José Dirceu, Silvio Pereira, o mensalão, o fisiologismo e a corrupção nos Correios seriam, portanto, exceções nesse universo de boas intenções. Diz a Polícia Federal: "Ao longo dos anos vem ocorrendo, tanto nos Correios quanto em outras empresas estatais do país, uma espécie de ‘loteamento’ dos cargos em comissão a pessoas dos mais diversos matizes políticos que se alternam no poder. Através desse instrumento censurável, busca-se angariar recursos financeiros junto às empresas privadas (...) Esses recursos, geralmente provenientes de ‘caixa dois’, são, em parte, destinados aos partidos políticos infiltrados nas empresas públicas à custa da dilapidação do erário levada a cabo por meio de fraudes de toda ordem realizadas em licitações".

GUERRA SANTA

Os líderes da chamada base aliada explicam as razões que levam deputados e senadores a disputas fratricidas por cargos no governo. E, ao contrário do que diz a Polícia Federal, as razões, quase sempre, são genuinamente republicanas

Tasso Marcelo/AE

"Há cargos de claro interesse político, que os partidos têm motivos para ocupar para implementar suas idéias. É o caso do PDT com o Ministério do Trabalho, área de afinidade histórica do partido. Mas esses casos são minoria. Na maioria, não dá para explicar qual é o interesse. O que me espanta é que antes era escândalo a troca de votos por cargos. Agora, essas negociações são apregoadas em rede nacional de rádio e TV."
Miro Teixeira, líder do PDT na Câmara

Celso Junior/AE

"Deputados e senadores precisam mostrar poder dentro do governo para desenvolver sua carreira política. Com os cargos, o político consegue atender à comunidade, atrair apoio dos prefeitos e montar sua base. Dependendo do cargo que você indique, fica próximo de empresários e financiadores de campanha, o que é essencial para todo político atualmente."
Ricardo Izar, vice-líder do PTB na Câmara

Sergio Dutti/AE

"A idéia de coalizão que eu tenho é de um presidencialismo parlamentarista. O presidente pega um setor e entrega a um partido que o apóia. Esse partido implementa suas políticas e passa a ser responsável pelos resultados. O PMDB, por exemplo, tem muito interesse na área da agricultura. Deveria ocupar integralmente esse ministério, todos os cargos de confiança, e garantir o apoio de seus parlamentares ao governo."
Michel Temer, presidente do PMDB

Joedson Alves/AE

"O cargo é uma coisa simbólica, que serve para mostrar que se tem poder. E o maior poder que você pode mostrar na base é a indicação de aliados para os principais cargos, do delegado do Ministério da Agricultura, do chefe da representação do Ministério da Saúde. Esse poder, além de simbólico, também pode ajudar o partido e o deputado a implementar suas idéias em benefício da população."
Mário Negromonte, líder do PP na Câmara

Celso Junior/AE

"Em um governo de coalizão, a administração deve ser compartilhada entre os partidos, o que significa distribuir cargos para os parlamentares. O político quer os cargos porque lhe dão visibilidade, que é essencial para sua eleição. Quem tem um cargo no DNIT em seu estado pode decidir quais obras serão priorizadas e comparecer a todas as inaugurações. É a face da atuação política dele, é voto na certa."
Luciano Castro, líder do PR na Câmara

25.1.08

Feijão, pagode e globalização

Alguém precisa avisar o ministro Carlos Lupi que os brasileiros que vivem nos Estados Unidos não precisam de uma "casa do trabalhador" para "matar saudades de um feijãozinho e ouvir música popular". Todas essas cidades onde vivem dezenas de milhares de emigrantes brasileiros -como Nova York, Boston e Miami- já têm um farto comércio de produtos do Brasil, justamente para atender a esse mercado, como acontece no capitalismo.
Na rua 46, em Manhattan, encontra-se tudo o que o ministro acha que faz falta aos brazucas: restaurantes que servem vatapá, churrasco e feijoada, lojas de bugigangas eletrônicas, de biquínis, de produtos da Amazônia, de remessa de dinheiro, depiladoras, agências de viagem, lanchonetes, mercados onde se compra, além do feijão, tudo de que se precisa para uma feijoada completa, a preço de banana.
Nessas cidades, a goiabada abunda, só falta o queijo minas, porque a vigilância sanitária local não deixa entrar. O resto tem: revista "Caras", cachaça 51, pomada Minâncora, sandália Havaiana, camisa do Flamengo, farinha de mandioca, chá mate, dendê e outros ícones da nacionalidade estão ao alcance de todos. Música popular nem se fala, qualquer Virgin Megastore tem mais discos brasileiros do que a maioria de nossas lojas.
Os brazucas acompanham as novelas e os jogos do Brasileirão pelos canais internacionais da Globo e da Record, lêem os jornais brasileiros pela internet, estão lá por vontade própria, ninguém os obrigou, voltam quando quiserem. E deviam voltar logo, já que o governo diz que aqui está uma maravilha.
Desconfio que essas "casas do trabalhador" só servirão mesmo para abrigar amigos e correligionários, pagos em dólar, com o suor dos nossos impostos: a bolsa-feijão e pagode.

Nelson Motta para Folha

24.1.08

O pouso depois do caos

Ninguém entendeu por que Congonhas, depois de demonizado, vai voltar a funcionar normalmente, como antes da grave crise aérea do ano passado.
Se as pistas continuam as mesmas, o pátio continua o mesmo, os prédios em volta continuam os mesmos, as companhias continuam as mesmas (até menos), o número de passageiros continua o mesmo (ou até mais), ou seja, se as condições objetivas são praticamente as mesmas, o que mudou?
Mudaram os comandos. A queda do Boeing em 2006, com 154 mortos, deflagrou um movimento dos controladores. Lula desautorizou o Comando da FAB e gerou uma queda em dominó na aviação civil. As companhias se aproveitaram.
O caos aéreo foi falta de Ministério da Defesa, falta de FAB, falta de Infraero, falta de Anac, com todos eles se acusando mutuamente enquanto as companhias atrasavam e cancelavam, pilotos e comissários sofriam e o usuário pagava o pato.
Lula errou feio ao manter as pessoas erradas nos lugares errados, na hora errada, ao quebrar a cadeia de comando e ao demorar demais para restituir o comando do Comando da FAB e trocar o ministro, a Infraero e toda a Anac.
As coisas começaram a voltar vagarosamente, mas o suficiente para que a aviação civil chegasse aos meses de pico, dezembro e janeiro, dentro da normalidade. Normalidade não significa que tudo fosse e voltasse a ser uma maravilha, porque não era e não é, mas em pleno Natal e em pleno Ano Novo não apareceram imagens de famílias jogadas pelos chãos, pessoas descontroladas e aos berros nos aeroportos. O caos não foi mais a tônica das tevês e dos jornais.
Falta evoluir da "normalidade" para uma solução real no centro nevrálgico, São Paulo, atender justas reivindicações dos controladores e priorizar o que, aparentemente, deixou de ser a prioridade no último ano: a segurança.
elianec@uol.com.br

Maquete de obra grandiosa

Editorial do Estadão

O balanço das realizações do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), apresentado pela ministra Dilma Rousseff na presença de uma dúzia de ministros de Estado, foi um bem acabado exemplo do jeito petista de governar. Resultados pífios foram apresentados como feitos grandiosos, capazes, como afirmou a chefe da Casa Civil em entrevista ao Estado, de funcionar como uma ’espécie de vacina’ contra as incertezas da economia mundial.

O sistema de classificação dos projetos, para começar, é um engodo. Inventaram selos verdes, amarelos e vermelhos para qualificar o andamento das obras, mas, aparentemente, não há critérios objetivos que acionem as cores desse semáforo. A distribuição dos selos corresponde, isso sim, às conveniências políticas do governo. Assim, num ano em que apenas 27% das verbas destinadas ao PAC foram efetivamente utilizadas, 82% das obras foram consideradas dentro do cronograma. Na avaliação anterior, em abril, o selo verde havia sido distribuído a 61%. Com andamento que exige atenção estão 16% e apenas 2% das obras estão em situação preocupante. Isso sim é que é eficiência!

O problema é que, quando o andamento das obras é escrutinado, se verifica que o governo é mais eficiente em mascarar suas falhas do que em realizar obras. A usina nuclear de Angra 3 está atrasada e a estimativa de seu término foi adiada de dezembro de 2013 para maio de 2014; o leilão da Usina de Belo Monte - um projeto que se arrasta lentamente - foi novamente postergado; a Hidrelétrica de Castro Alves, que já deveria estar funcionando, ainda está em processo de enchimento de reservatório - e, no entanto, todas essas obras receberam o selo verde de pontualidade.

O governo petista padece de notória incapacidade de transformar idéias em projetos executivos e obras. A lentidão das obras do PAC não pode ser atribuída à falta de recursos orçamentários. O dinheiro existe e está ocioso.

Mas não é isso o que a propaganda petista - e nisso o governo é eficiente - alardeia. Pelos números do balanço oficial, 97% (R$ 16,006 bilhões de um total de R$ 16,559 bilhões) das verbas destinadas ao PAC foram reservadas para obras específicas. À primeira vista, trata-se de execução orçamentária primorosa. Mas, bem vistas as coisas, constata-se que, do total reservado, foram desembolsados apenas R$ 4,536 bilhões, ou 27%. O resto foi jogado para o exercício de 2008 e só será efetivamente gasto se o governo demonstrar um pouco mais de capacidade gerencial.

Esse truque contábil explica a aparente tranqüilidade demonstrada por vários ministros que diziam que os planos de investimento do governo não seriam afetados nem pelo atraso na aprovação do orçamento de 2008 nem pelo corte de verbas em decorrência da extinção da CPMF. Apenas se esqueceram de dizer que o que apresentavam como folga orçamentária não passava da transferência de exercício de restos a pagar e de empenhos - ou seja, de dinheiro que não conseguiram gastar em projetos produtivos. Enquanto isso, a infra-estrutura nacional se desmilíngue.

A ineficiência que o governo petista demonstra em aplicar recursos em investimentos contrapõe-se à extrema habilidade revelada quando se trata de aumentar as despesas públicas com custeio e salários. Há três anos que essas despesas - que aumentam os gastos continuados do governo - não param de crescer, ao passo que os investimentos públicos do governo Lula continuam muito atrás dos realizados no governo Fernando Henrique. Em 2002, por exemplo, foi investido 0,83% do PIB e Lula dizia ter recebido uma ’herança maldita’. Prometeu fazer do País um canteiro de obras, mas em 2006 fez investimentos equivalentes a 0,66% do PIB e, no ano passado, a 0,76% do PIB. E não se pode deixar de considerar que a administração Fernando Henrique foi abalada por pelo menos duas grandes crises financeiras, enquanto o governo Lula, até o momento, navegava em águas plácidas.

Diante dos problemas de infra-estrutura que o País enfrenta e das promessas de crescimento feitas pelo governo petista, a execução do PAC é decepcionante. Como definiu a Federação do Comércio do Estado de São Paulo, o Programa de Aceleração do Crescimento não passa de uma maquete de uma obra grandiosa.

23.1.08

Cartões do governo pagam até despesas em joalheria

Ministra da Igualdade Racial, por exemplo, gasta R$ 461 em free shop e diz que se enganou

Portal do governo mostra que instrumento indicado para gastos "emergenciais" foi usado em choperia e loja de instrumentos musicais


Os cartões de crédito corporativo do governo federal, indicados para gastos "emergenciais", como a compra de material, prestação de serviços e diárias de servidores em viagens, foram usados em 2007 para pagar despesas em loja de instrumentos musicais, veterinária, óticas, choperias, joalherias e em free shop, conforme dados do Portal da Transparência, site do próprio governo.
Os responsáveis pelas compras afirmaram que a prática é legal e todas as compras eram necessárias. Não foi o que aconteceu com a ministra Matilde Ribeiro (Igualdade Racial), que pagou despesa de R$ 461,16 em um free-shop em outubro do ano passado. Alertada pelo ministério, ela reconheceu o "engano" e afirmou ter ressarcido o valor à União só neste mês.
Os gastos nesses estabelecimentos, alguns irrisórios, foram feitos por funcionários e pelos próprios ministros. No ano passado, toda a máquina federal gastou R$ 75,6 milhões com o cartão de crédito corporativo, aumento de 129% em relação aos gastos de 2006. A elevação se deve pelo fato de ter aumentado o uso do cartão que, segundo a CGU (Controladoria Geral da União), é mais transparente e fácil de fiscalizar.
Apesar de os gastos serem "emergenciais", o Ministério do Trabalho pagou R$ 480 para consertar um relógio importado numa joalheria de Brasília.
O ministro dos Esportes, Orlando Silva, gastou R$ 468,05 no restaurante Bela Cintra, nos Jardins. O valor médio da refeição lá é de R$ 150 por pessoa. Não consta da agenda do ministro na internet nenhuma atividade na data (25 de setembro). Sua assessoria, contudo, enviou à Folha agenda que assegura ser a do dia, quando Silva estaria em São Paulo. Disse que a ausência da programação no site do ministério se deve a "problemas de atualização".
Orlando Silva usou o cartão em outros restaurantes: R$ 198,22 em uma churrascaria na capital paulista, em 22 de outubro, quando também não havia nenhuma atividade em sua agenda na internet. No mesmo dia, segundo o portal da Transparência, há o registro de outro gasto com restaurante: R$ 217,80 no francês Le Vin Bistro, também no Jardins. A assessoria informou que os gastos ocorreram em dias diferentes, quando o ministro cumpria agenda em São Paulo.
No dia 29 de junho de 2007, quando a agenda de Orlando Silva informa que ele iria "despachar internamente", o extrato de seu cartão mostra gasto de R$ 196,23 em uma churrascaria na capital fluminense.
Já o ministro Altemir Gregolin (Pesca) gastou em julho passado R$ 70 na choperia Pingüim, em Ribeirão Preto (SP). Ele, contudo, justifica que foi ao local jantar, e que não consumiu bebidas alcóolicas. Os dados disponíveis na internet não descrevem os itens consumidos. O ministro tinha uma agenda oficial na cidade.
O Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia), órgão ligado à Presidência, pagou compra de R$ 80 em uma loja de instrumentos musicais no centro de Porto Velho (RO). Em Porto Alegre, funcionários da Empresa de Trens Urbanos, que tem a União como acionista majoritária, gastaram R$ 209,99 em uma veterinária, R$ 630 em uma loja de eletrodomésticos, R$ 1.178 em duas óticas e R$ 695 em uma floricultura.
As despesas com cartões corporativos vêm aumentando desde sua criação, em 2001. Eles substituem as contas "tipo B", quando um servidor recebe o dinheiro e depois presta contas. Essas contas ainda são usadas -em 2007, os gastos com elas chegaram a R$ 101,3 milhões, valor superior ao dos cartões (R$ 75,6 milhões).

Folha

19.1.08

Crédito ou débito?

A ministra Matilde Ribeiro transforma o cartão de crédito pago pelo governo em um segundo salário


Fábio Portela

Ernesto Rodrigues/AE

A cota da ministra

Em 2007, a ministra Matilde Ribeiro gastou 171 500 reais no cartão de crédito pago pelo governo. Fez até compras no free shop

126 000 reais aluguel de carros
35 700 reais hotéis e resorts
4 500 reais bares, restaurantes e até padaria
460 reais free shop
4 800 reais despesas diversas

171 500 reais total

A assistente social Matilde Ribeiro é uma das ministras mais longevas do governo Lula. Ela comanda a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial desde março de 2003. Apesar de estar há tanto tempo no cargo, o que ela faz em Brasília ainda é um mistério. Recentemente, abriu-se uma chance de preencher essa lacuna. É possível traçar um retrato detalhado das ações e dos hábitos da ministra com base na fatura do seu cartão de crédito corporativo. O uso desse tipo de benefício é concedido aos funcionários que ocupam os cargos mais altos da Esplanada e do Palácio do Planalto. Serve para que eles paguem algumas despesas decorrentes do exercício da função. No fim do mês, a conta é enviada ao Tesouro. Estaria tudo certo se o cartão fosse usado com critério, mas tem sempre aqueles que exageram. Matilde está entre eles. Fechadas as contas de 2007, descobriu-se que ela torrou 171.500 reais no cartão pago pelos contribuintes. Foi de longe a ministra mais perdulária da Esplanada. Em média, foram 14.300 reais por mês, mais do que seu salário, que é de 10.700 reais. Isso, sim, é que é emenda no orçamento.

Matilde jura que só usou o cartão corporativo para pagar despesas de viagens oficiais. De fato, ela viaja tanto que poderia assumir o Ministério do Turismo. No ano passado, pagou 67 contas em hotéis – média de 5,5 contas por mês. É rara a semana em que ela não se hospeda em algum estabelecimento. Seu favorito é o confortável Pestana, um cinco-estrelas que enfeita a Praia de Copacabana. Ela esteve por lá 22 vezes no ano passado, ao custo total de 10.000 reais. A ministra também gosta de usar o cartão para pagar contas em bares, choperias, quiosques, restaurantes, rotisseries e até padarias. No Rio de Janeiro, ela adora o restaurante Nova Capela, conhecido reduto da boemia carioca, e o bar Amarelinho, que se orgulha de servir o chope mais gelado da cidade. Em São Paulo, Matilde é assídua na padaria Bella Paulista, que fica aberta 24 horas por dia e é freqüentada pelos notívagos paulistanos. Nas refeições, ninguém pode acusá-la de abandonar a bandeira da igualdade racial: ela usou seu cartão dez vezes em restaurantes italianos, nove em árabes e três em japoneses.

A maior parte dos gastos do cartão de crédito corporativo da ministra, no entanto, se refere a aluguel de veículos. Ela tem um carro oficial em Brasília e, quando viaja, não se arrisca a ficar a pé. Assim que desembarca em uma cidade, saca o seu cartão oficial e, zás, aluga um automóvel do seu gosto. Em 2007, ela usou nada menos que 126.000 reais com essa finalidade. Curiosamente, se decidisse alugar um Vectra, o veículo mais caro oferecido pela sua locadora habitual, a Localiza, gastaria 116.000 reais por ano. Que tipo de carro será que a ministra aluga? Matilde utilizou o cartão de crédito do governo até para fazer compras em free shop. Em 29 de outubro, gastou 460 reais em um desses estabelecimentos. Questionada por VEJA, a ministra disse que, na ocasião, usou o cartão pago com dinheiro público "por engano" e que "o valor já foi ressarcido à União". Ela passou pelo free shop na volta de uma de suas muitas viagens ao exterior. Em 2007, Matilde visitou Estados Unidos, Cuba, Quênia, Burkina Faso, Congo e África do Sul. Na semana passada, estava no Senegal. Quem sabe até o fim deste ano ela não descola também um cartão de crédito internacional?

12.1.08

Rumo à supertele

Empresa resultante da compra da Brasil Telecom pela Oi, com controle nacional, é projeto antigo do governo Lula


Lauro Jardim

Evaristo Sá/AFP
Lula: em 2005, a revelação da ligação entre Lulinha e a Telemar atrasou a operação


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Quadro: A supertele

Os próximos dias serão longos, estressantes e inesquecíveis para um seleto grupo de empresários, executivos e advogados brasileiros. Uma turma de trinta pessoas estará às voltas com o detalhamento de um negócio que criará uma superempresa de telecomunicações, resultado da compra da Brasil Telecom pela Oi (antiga Telemar). A nova empresa, que poderá ser batizada de Oi Brasil, terá números superlativos a apresentar. Será dona de 65% da telefonia fixa no país. Terá 43% do mercado total de banda larga. E 17% dos assinantes de telefonia celular. É o surgimento de um gigante de quase 30 bilhões de reais de faturamento anual. Muito mais que o da Vale ou o do grupo Pão de Açúcar, dois ícones entre as empresas de capital nacional.

A questão central da negociação resolveu-se na noite da segunda-feira passada. Foi definido que a Oi pagará 4,85 bilhões de reais pelo controle da Brasil Telecom. Mais 3,8 bilhões de reais poderão ser gastos pela Oi para comprar as ações dos minoritários, por causa de um mecanismo chamado tag along (que obrigará a Oi a adquirir as ações dos minoritários, remunerando-os com pelo menos 80% do valor pago pelas ações dos controladores da BrT). Somem-se as duas quantias e chega-se a um negócio de 8,65 bilhões de reais – quase tudo financiado pelo BNDES.

Falta agora detalhar alguns pontos do rearranjo societário das duas empresas. O grupo GP, por exemplo, sairá da Oi. O Citibank está dando bye-bye à Brasil Telecom. A nova empresa será controlada por Sérgio Andrade (da Andrade Gutierrez) e Carlos Jereissati (do grupo La Fonte), hoje integrantes do bloco de controle da Oi. Juntos, terão 50,3% do negócio. O mais espinhoso desses rearranjos será a definição do poder que os fundos de pensão e o BNDES, acionistas da Brasil Telecom e da Oi, terão na nova empresa – a chamada "governança corporativa". Eles concordam em ficar com uma fatia entre 12% e 20% da nova empresa, mas querem manter alguns direitos de veto sobre atos dos controladores. Nada que não possa ser resolvido – e rápido.

Otavio Magalhães/AE
Martelo batido na privatização: o número de telefones multiplicou-se por dez desde 1998

É necessário também que seja alterada a lei que regulamenta as telecomunicações. Pela legislação em vigor, a compra não é permitida, pois o mesmo controlador não pode ser dono de duas concessionárias. Isso não será empecilho. O Palácio do Planalto desde sempre avisou às partes que está pronto para editar um decreto mandando essa proibição para o espaço. A mexida na lei será feita em velocidade de carro de Fórmula 1 – o negócio tem a bênção do governo Lula. E não é de hoje.

A operação estava marcada para vir ao mundo em 2006, conforme mostrou uma reportagem de VEJA publicada em outubro daquele ano. O que a travou foi justamente a descoberta, pela revista, de que o lobby para mudar a legislação impeditiva foi tão violento que chegou a envolver o filho do presidente da República, Fábio Luís, o Lulinha, e seu amigo, Kalil Bittar. Antes disso, VEJA havia revelado que, em 2005, a Telemar (atual Oi) investira 5,2 milhões de reais na Gamecorp, uma produtora de TV e de jogos para celular que tem entre os seus sócios Lulinha e Bittar. Quem aproximou a Telemar e a Gamecorp foi o consultor Antoninho Trevisan, amigo de Lula. Trevisan convenceu, inicialmente, Fersen Lambranho, do grupo GP, da boa oportunidade de investimento na empresa do filho do presidente. Lambranho levou a idéia aos sócios Carlos Jereissati e Sérgio Andrade e – bingo! – o negócio foi fechado num piscar de olhos. Até agora, a Telemar/Oi investiu mais de 10 milhões de reais na Gamecorp. A produtora fechou no vermelho em 2005 e 2006. O balanço de 2007 ainda não é conhecido.

O impacto da descoberta de VEJA adormeceu o negócio entre a Oi e a Brasil Telecom. Mas não o matou. No ano passado, sob a declarada boa vontade do governo, as conversas recomeçaram. E intensificaram-se a partir de novembro. Entre os dias 18 e 21 de dezembro, chegou-se ao estágio final. Houve reuniões diárias em São Paulo, ora no escritório de Carlos Jereissati, ora na sede da Angra Partners, empresa que representa os fundos de pensão nesse e em outros negócios. Pela Oi, compareceram Jereissati e Otávio Azevedo, braço direito de Sérgio Andrade. O advogado Sérgio Spinelli representou o Citibank. Do lado dos fundos de pensão, havia Alberto Guth e Pedro Paulo de Campos, da Angra. Numa das vezes, Sérgio Rosa, presidente da Previ, deu as caras. A primeira oferta da Oi, ainda em novembro, foi de 3 bilhões de reais. Mas os lances foram subindo. No dia 21 de dezembro, o negócio estava por um fio para ser fechado. Os fundos de pensão e o Citibank pediam 5,2 bilhões de reais pelas suas participações na Brasil Telecom. A oferta da Oi era de 4,5 bilhões. A diferença relativamente pequena não impediu que Jereissati, num rompante, interrompesse a negociação, dizendo que estava "sendo extorquido". Ânimos serenados, marcou-se uma reunião para a segunda-feira passada. O acordo final acabou saindo por 4,85 bilhões de reais.

Fotos Eugênio Sávio/Valor e Rui Mendes
Sérgio Andrade (à esq.) e Carlos Jereissati (à dir.): à frente da supertele, depois de dois anos de espera

Para o usuário, a nova empresa pouco afetará a sua vida na telefonia fixa, em que já não há concorrência. Em relação aos celulares, a conversa é outra: prevê-se um acirramento da concorrência com a TIM, Vivo e Claro. A concentração em setores como o de telecomunicações é uma tendência inevitável no estágio atual do capitalismo global. Sob o ponto de vista dos diretamente envolvidos, a união das duas empresas faz todo o sentido. Separadas, inevitavelmente seriam compradas em algum momento pelos espanhóis (Telefônica) ou pelos mexicanos (Claro e Embratel). "O nome do jogo é escala", diz o presidente de uma das teles envolvidas no negócio. Hoje, espanhóis e mexicanos detêm 68% da telefonia móvel e 62% da fixa na América Latina. Mas será que uma Telemar vitaminada conseguirá brigar com esses dois gigantes, num setor que sabidamente se utiliza de capital intensivo? Só no Brasil, por exemplo, a Telefônica já investiu 29 bilhões de reais desde 1998. Outros 15 bilhões estão previstos para os próximos dois anos. É consenso entre os analistas de mercado que o poder de fogo da Oi e da BrT é suficiente para encarar a concorrência. Mas a nova empresa terá de olhar para fora do Brasil e comprar ativos em países da América Latina. A Telecom Argentina, aliás, deve ser o primeiro alvo da empresa resultante dessa aquisição.

Os novos caciques da telecomunicação brasileira, Sérgio Andrade, de 62 anos, e Carlos Jereissati, de 61, têm em comum a proximidade que sempre cultivaram com o estado. Cada um ao seu modo. Andrade, por exemplo, tinha excelente relação com José Sarney e FHC, em seus tempos de presidente da República. E agora é um dos empresários com mais acesso a Lula. Jereissati, por seu turno, há quase duas décadas se movimenta com bastante desenvoltura entre os fundos de pensão de estatais. Também os une o fato de que até a privatização do setor, em 1998, seus focos de negócios eram outros. Andrade era um gigante da construção pesada. E Jereissati, um nome expressivo no setor de shopping centers. Eles continuam nesses ramos, mas a telecomunicação virou a galinha dos ovos de ouro de ambos. O ingresso da dupla no setor foi atribulado. O leilão de privatização da Telemar foi recheado de denúncias e confusão. Um coquetel que misturava grampos telefônicos, revelações de favorecimento no financiamento para a compra da empresa e negócios poucos transparentes com fundos de pensão. Àquela altura, a Telemar era o patinho feio da privatização. Como o capitalismo brasileiro é cheio de surpresas, para dizer o mínimo, agora o patinho feio está jantando a Brasil Telecom, alvo da maior disputa societária que o país já viu – aquela que opôs Daniel Dantas aos fundos de pensão e à Telecom Italia. Depois que saiu das mãos de Dantas, há dois anos, o valor de mercado da empresa passou de 5,6 bilhões de reais para 14,1 bilhões de reais.

Desde que o site de VEJA, na quarta-feira, revelou que o negócio estava fechado (mas não assinado), dois movimentos se precipitaram. Pelo lado da Oi e Brasil Telecom, recrudesceram a tensão e a necessidade de fechar o negócio rapidamente. Entre os concorrentes, por sua vez, acendeu-se o desejo de atrapalhar a concretização do negócio. A Portugal Telecom (sócia da Vivo) já fez chegar ao governo que gostaria de integrar a nova empresa. Será difícil. O governo quer que o negócio saia logo – e com os parceiros de quase dois anos atrás.

11.1.08

Pode muito, não pode tudo

O presidente da República declarou que não haveria aumento de tributos para compensar a CPMF e, se bem lembrado estou, após a derrota da prorrogação da mesma e havendo risco da DRU, houve promessa formal de que não haveria agravamento de carga fiscal. O presidente da República chegou mesmo a puxar as orelhas de um ou dois ministros porque haviam falado nisso. Pois a passagem do ano foi o bastante para que o dito passasse a ser desdito. E os jornais do dia 3 foram abundantes quanto a medidas ontem negadas e hoje confirmadas. Nem faltou louvor aos ministros admoestados.

A reação foi imediata. O mínimo que se falou foi em traição. Independentemente do mérito do "pacote", fazer hoje o que ontem se negava, não é bom para ninguém, nem para o governo. O governo ainda tem três anos de vida e pode ter problemas e a necessidade de contar com um mínimo de sua boa vontade; a velhacaria pode ser boa por um dia, mas desacredita três anos restantes de governo; a palavra prometida tem de ser honrada; o governo não pode ser visto como felão. Na vida parlamentar, como na vida social, as combinações avençadas têm a garantia de honra. E não só dela. Também do interesse. Lincoln disse que, se o desonesto soubesse como é vantajoso ser honesto, seria honesto por desonestidade. Mutatis mutandis, os compromissos parlamentares são sagrados. Dir-se-á que quem acha natural o mensalão e foi o inventor do caixa 2 tem outros critérios e outros padrões. Contudo, Lincoln costumava ter razão em suas sentenças.

O fato é que o presidente não se acanhou em aumentar despesas e agravar a carga fiscal que, embora enriqueça o erário, empobrece a nação. Isso sem falar na duvidosa qualidade dos serviços públicos em geral.

Em 2007, mais uma vez, a carga foi agravada, e os brasileiros nunca pagaram tanto tributo. De cada R$ 100 produzidos, 36% foram papados pelo fisco, chegando a 36,02% do PIB, mais 0,81 ponto percentual em relação aos 35,21% de 2006. Os contribuintes deixaram mais de R$ 928 bilhões nos cofres da União, dos estados e dos municípios, ou R$ 2,54 bilhões por dia. Não é só. O desembolso do brasileiro ao fisco corresponde ao que ele ganha em 146 dias de trabalho, de 1º de janeiro a 26 de maio. Ainda mais. Se se levar em conta os contribuintes de classe média, renda mensal entre R$ 3 mil e R$ 10 mil, a carga fiscal sobre a renda bruta sobe para 42,7%, e para 156 dias de trabalho, de 1º de janeiro a 5 de junho.

Esses dados, apurados pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, ilustram a sentença segundo a qual o brasileiro paga tributos escandinavos em troca de serviços africanos. Estou convencido de que há necessidade de abrandar a contribuição tributária, que onera o contribuinte brasileiro, e verifico que perdura a idéia fixa de esfolá-lo sempre e cada vez mais.

No momento em que escrevo, chega-me às mãos um dos grandes jornais do país, o Estadão. No editorial "Infidelidade e deboche", leio estas palavras: "Quanto vale hoje a palavra do presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Deveria ter ainda algum valor, quando a oposição aceitou, no mês passado, sua promessa de não elevar tributos para compensar o fim da CPMF. Em troca a oposição apoiaria a renovação da DRU, a desvinculação das receitas da União. Pois o presidente conseguiu baixar ainda mais sua credibilidade ao assinar, no primeiro dia útil do ano, dois atos de majoração tributária".

Como se não bastasse a perfídia, o seu ministro da Fazenda não se pejou da gaiatice (a palavra deveria ser outra) e escarnecer "o compromisso do presidente Lula era não promover alta de impostos em 2007. E de fato não o fez. Estamos fazendo em 2008, o que está dentro do programado". Sem comentários. O despudor tem limites.

A situação mundial não é tranqüila. O que os Bancos Centrais já despejaram de dinheiro para aliviar temores mundiais na área financeira indica a gravidade dos problemas existentes. E, com todas as providências adotadas, volta-se a falar em recessão nos Estados Unidos, e quem fala sabe o que diz. Amanhã o governo poderá necessitar entender-se com a oposição e quem vai levar a sério os compromissos que o presidente assume ou promete assumir?


Paulo Brossard

10.1.08

"Porque não pode todo mundo ser o Ronaldinho"

"Porque não pode todo mundo ser o Ronaldinho"

Eis a explicação do presidente Lula para o tremendo sucesso de seu filho Fábio Luís, que coincide com o mandato presidencial do pai


Alexandre Oltramari


Lula Marques/Folha Imagem e Luciana Prezia/AE
BONS DE TV
O Ronaldinho do presidente: em um ano, Lulinha saiu do emprego de 600 reais para virar fenômeno das comunicações


NESTA REPORTAGEM
Quadro: A ascensão de Lulinha durante o governo de seu pai

Como aconteceria com qualquer pai, o presidente Lula tem demonstrado o orgulho que sente pelo sucesso de seu filho Fábio Luís Lula da Silva. Aos 31 anos, Lulinha, apelido que ele detesta, é um empresário bem-sucedido. É sócio de uma produtora, a Gamecorp, que, com um capital de apenas 100.000 reais, conseguiu fazer um negócio extraordinário: vendeu parte de suas ações à Telemar, a maior empresa de telefonia do país, por 5,2 milhões de reais. Como a Telemar tem capital público e é uma concessionária de serviço público, a sociedade com o filho do presidente sempre causou estranheza. Na segunda-feira passada, em entrevista ao programa Roda Viva, Lula teve de falar em público sobre os negócios do filho. "Não posso impedir que ele trabalhe. Vale para o meu filho o que vale para os 190 milhões de brasileiros. Se têm alguma dúvida, acionem ele", afirmou. Dois dias depois, em entrevista à Folha de S.Paulo, o assunto Lulinha voltou ao foco. Os jornalistas lhe apresentaram uma questão formulada por um leitor do jornal, que não foi identificado. A pergunta dizia o seguinte: "Tenho 61 anos, sou pai de quatro filhos adultos, todos com curso superior, mas com dificuldades de bons empregos ou de empreender. Como é que o seu filho conseguiu virar empresário, sócio da Telemar, com capital vultoso de 5 milhões de reais?".

Em sua resposta, o presidente Lula começou explicando que seu filho virou sócio da Gamecorp quando a empresa, fundada por alguns amigos em Campinas, já tinha mais de dez anos de vida. "Eles fizeram um negócio que deu certo. Deu tão certo que até muita gente ficou com inveja", disse. Em seguida, o presidente fez menção às suspeitas que cercam a sociedade da Gamecorp com a Telemar. "Se alguém souber de alguma coisa que meu filho tenha cometido de errado, é simples: o meu filho está subordinado à mesma Constituição a que eu estou", disse o presidente, fazendo logo depois uma divagação comparativa que já nasceu imortal: "Porque deve haver um milhão de pais reclamando: por que meu filho não é o Ronaldinho? Porque não pode todo mundo ser o Ronaldinho". Os entrevistadores gostaram do paralelo estabelecido pelo presidente entre seu filho e o astro do futebol e perguntaram se não seria mais fácil virar um Ronaldinho quando se é filho do presidente. Lula respondeu: "Não é mais fácil, pelo contrário, é muito mais difícil. E eu tenho orgulho porque o fato de ser presidente da República não mudou um milímetro o hábito dos meus filhos".


Antonio Milena
Michel Filho/Ag. O Globo
DUAS PERGUNTAS
Sede da Gamecorp em São Paulo (à esq.) e o prédio da Telemar, no Rio de Janeiro: por que a telefônica optou pela Gamecorp e por que a sociedade foi montada de modo a ficar sob sigilo?

Pouco ou nada se sabe dos hábitos dos filhos de Lula antes ou depois de o pai receber a faixa presidencial. Mas a trajetória profissional de Fábio Luís mudou e muito. Foi só depois da posse que seus dons fenomenais começaram a se expressar – e com tal intensidade a ponto de o pai ver nele um Ronaldinho dos negócios. Ele mostrou talento para as comunicações e, como se lerá nesta reportagem de VEJA, para a atividade de lobista junto ao governo. A reportagem revela que o filho do presidente associou-se ao lobista Alexandre Paes dos Santos, um personagem explosivo, que responde a três inquéritos da Polícia Federal, por suspeitas de corrupção, contrabando e tráfico de influência. Esse dom do filho do presidente se revelaria ainda no episódio de sua associação com a Telemar.

Sabe-se agora que os 15 milhões de reais investidos pela Telemar na empresa de Lulinha não foram um investimento qualquer. As circunstâncias sugerem que o objetivo mais óbvio seria comprar o acesso que o filho do presidente tem a altas figuras da República. O setor de telefonia estava e está em uma guerra em que, a se repetir a tendência mundial, haverá apenas um ou dois vencedores. Ganhar fatias do adversário é vital. Houve uma corrida entre grandes empresas de telecomunicações para ver quem conseguia alinhar o filho do presidente entre seu time de lobistas. A Telemar venceu. A maior empresa de telecomunicações do Brasil em faturamento e em número de telefones fixos instalados, e com 64% do território nacional coberto por ela, a Telemar é uma empresa cujo faturamento anual supera 7 bilhões de dólares. A aposta na associação com Lulinha acabou não sendo muito produtiva para a Telemar porque o escândalo veio à tona. Mas foi por pouco. O governo negociava a queda de barreiras legais que impedem a atuação nacional de empresas de telefonia fixa. Além disso, por orientação do governo, fundos de pensão de estatais preparavam-se para vender fatias relevantes de sua participação acionária no setor. Quem estivesse mais perto do poder se sairia melhor.


Vidal Cavalcante/AE
GRATIDÃO DO PRESIDENTE
Kalil Bittar, sócio de Lulinha, a quem Lula chegou a fazer uma homenagem no Alvorada pela ajuda que dá a seu filho

O Ronaldinho do presidente Lula é mesmo um fenômeno. Formado em biologia, ele ainda era chamado de Lulinha, apelido que os amigos hoje evitam, quando trabalhava como monitor no zoológico de São Paulo, com um salário de 600 reais por mês. Para reforçar seus ganhos, dava aulas de inglês e computação. Do ponto de vista profissional e financeiro, vivia uma situação que parece ser muito semelhante à dos quatro filhos com curso superior do leitor da Folha. Em dezembro de 2003, no entanto, quando Lula estava em via de completar seu primeiro ano no Palácio do Planalto, Lulinha começou sua decolagem rumo à galeria exclusiva dos indivíduos fenomenais. Junto com Kalil e Fernando Bittar, filhos de Jacó Bittar, ex-prefeito de Campinas e um velho amigo do presidente, Fábio Luís tornou-se sócio da Gamecorp, empresa de games que ainda se chamava G4 Entretenimento e Tecnologia Digital. Até aqui a trajetória de Fábio Luís lembra a dos geniozinhos americanos do Vale do Silício que se enfurnam em uma garagem e saem de lá com uma idéia matadora de vanguarda como o Google ou o YouTube, projetando-se para o estrelato dos negócios multimilionários. A Gamecorp continuou a expandir-se. Em junho deste ano, fechou um contrato com a Rede Bandeirantes para alugar seis horas de programação diária no Canal 21. Depois que o contrato foi firmado, a emissora mudou de nome: de Canal 21, passou a chamar-se PlayTV. Oficialmente, trata-se de um arrendamento de horário.

Em janeiro de 2005, apenas um ano depois da chegada de Lulinha à empresa, a Gamecorp já estava recebendo o aporte milionário de 5,2 milhões de reais da Telemar – e Lulinha já era um empreendedor de raro sucesso. A Gamecorp dera um salto estratosférico, coisa rara mesmo num mercado em expansão, como é o caso da internet e dos jogos eletrônicos. A sociedade entre a Telemar e a Gamecorp se materializou por meio de uma operação complexa, que envolveu uma terceira empresa e uma compra de debêntures seguida de conversão quase imediata em ações. O procedimento visava a ocultar a entrada da Telemar no negócio. VEJA revelou a associação em julho do ano passado.

O caso de Lulinha tem uma complexidade maior. Sua relação com a Telemar não se esgota nos interesses de ambos na Gamecorp. O filho do presidente foi acionado para defender interesses maiores da Telemar junto ao governo que o pai chefia. Em especial, em setores em que se estudava uma mudança na legislação de telecomunicações que beneficiava a Telemar. VEJA descobriu agora que a mudança na lei foi tratada por Lulinha e seu sócio Kalil Bittar com altos funcionários do governo. O assunto levou a dupla a três encontros com Daniel Goldberg, titular da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE). Em um desses encontros, ocorrido no início de 2005, Lulinha e Kalil, já então sócios da Telemar, sondaram o secretário sobre a posição que a SDE tomaria caso a Telemar comprasse a concorrente Brasil Telecom – fusão que a lei proíbe ainda hoje. Goldberg, ciente do obstáculo legal, disse que o negócio só seria possível mediante mudança na lei. O estouro do escândalo Lulinha abortou os esforços para mudar a legislação e favorecer o sócio do filho do presidente.

Quando a Telemar fez uma oferta de compra à Brasil Telecom, o mercado interpretou o movimento como um sinal de que a mudança na lei era dada como certa. Paralelamente à oferta, estavam em plena efervescência os encontros de Lulinha e Kalil com Goldberg para tratar dos bastidores da negociação entre duas gigantes da telefonia. Oficialmente nada disso ocorreu. O assessor de Lulinha e Kalil, o jornalista Cláudio Sá, diz que, se houve encontros com Goldberg, foram contatos meramente sociais. Mas do que eles falaram? "Encontros sociais. Aperta a mão. Como vai? Tudo bem? Tudo certo? Esse tipo de coisa", responde o assessor. Goldberg diz que não foi nada disso. Ele conta que conversou com Lulinha e Kalil para aconselhá-los a contratar uma "consultoria tributária e um escritório de advocacia". É bastante improvável que essa seja toda a verdade porque, nessa época, a Gamecorp já tinha consultor. Era Antoninho Marmo Trevisan, amigão do presidente.

A constatação que se esconde por trás disso é a de que Lulinha, depois de receber a bolada da Telemar, começou a comportar-se como lobista da empresa junto ao governo de seu pai. Pode-se afirmar com certeza que em pelo menos um encontro oficial Lulinha tratou de ajudá-la. Antes de entrar o dinheiro da Telemar o lobby da dupla Lulinha-Kalil era feito justamente em favor da concorrente, a Brasil Telecom. Com a ajuda de Lulinha e Kalil, Yon Moreira da Silva, da Brasil Telecom, conseguiu ser recebido pelo presidente Lula em uma audiência que, curiosamente, não constou da agenda oficial do Palácio do Planalto. Ela foi marcada por César Alvarez, assessor especial da Presidência, e durou quase duas horas – sem mais ninguém na sala. Sobre o que Yon Moreira e o presidente conversaram? Segundo Yon Moreira, sobre o projeto Computador Conectado, que visaria difundir a venda de computadores populares e o acesso gratuito à internet. "Lula ficou impressionado com o projeto que apresentei a ele", diz Yon. "Houve uma sintonia entre nós. Mas não falamos nenhuma palavra sobre o filho dele." Yon Moreira completa: "Lula queria que os pobres do Brasil tivessem acesso à internet, e eu tinha o melhor projeto para realizar esse sonho". O auxílio de Lulinha e Kalil ao então diretor da Brasil Telecom é grave à luz de uma informação adicional: o encontro ocorreu no mesmo período em que o representante da empresa pagava 60.000 reais mensais a Lulinha e Kalil a pretexto de patrocinar um programa de games da dupla exibido pela Rede Bandeirantes. Essa é a mais simples e clara demonstração de um lobby empresarial junto ao governo: a Brasil Telecom patrocinava Lulinha e Kalil e, ao mesmo tempo, a dupla abria as portas da sala do presidente da República à Brasil Telecom. Parece inocente. Não é. Como esses encontros ocorreram a portas fechadas e como os interesses das teles eram (e são) bilionários, qualquer simpatia do governo por um ou outro contendor é decisiva.


Ricardo Benichio
Pedro Rubens
MAUS LOBISTAS
Os movimentos de Lulinha e Kalil incluíram serviços para a empresária Arlette Siaretta (acima, à esq.), a quem levaram até o Palácio da Alvorada; ajuda ao então diretor da Brasil Telecom, Yon Moreira da Silva (abaixo, à esq.); e sondagem sobre a Telemar junto a Daniel Goldberg, secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça
Rafael Jacinto/Valor/Folha Imagem
Elza Fioesa/ABR

Em suas visitas a Brasília, Lulinha e Kalil ocupavam uma sala no escritório do lobista Alexandre Paes dos Santos, conhecido como APS (veja reportagem). O escritório de APS está instalado em uma imponente mansão com quatro andares e elevador na sofisticada região do Lago Sul. Ali, com regularidade mensal, Lulinha e Kalil despacharam por quase dois anos, entre o fim de 2003 e julho do ano passado. A sala usada pela dupla tem 40 metros quadrados. Fica bem ao lado da sala do lobista APS. Há algumas semanas, estava mobiliada com duas mesas. Todas as cadeiras eram vermelhas. Havia dois computadores, duas linhas telefônicas, uma impressora e um único quadro na parede. Lulinha e Kalil tinham ramais privativos, o 8118 e o 8130. Sobre sua relação com a dupla Lulinha-Kalil, APS diz apenas: "Eu emprestei a sala, mas não tenho a menor idéia do que eles faziam lá". Seria ingênuo esperar que dissesse alguma coisa mais comprometedora sobre os vizinhos de sala e colegas por dois anos.

Além da sala, APS também colocou sua frota à disposição da dupla. Quando Lulinha e Kalil começaram a freqüentar o escritório do lobista, seus deslocamentos por Brasília eram feitos em Ford Fiesta. Com cerca de 1,90 metro de altura, Kalil reclamou que o Fiesta era desconfortável e disse que gostaria de um carro mais espaçoso. APS substituiu o Fiesta por um Omega. Enquanto despachavam na mansão de APS durante o dia, Kalil e Lulinha eram hospedados na Granja do Torto ou no Palácio da Alvorada, residências oficiais da Presidência da República. Quando isso não era possível, Kalil ia para o hotel Blue Tree, a menos de 1 quilômetro do Alvorada. Não se conhecem bem as razões pelas quais Lulinha e Kalil mantinham uma sala no escritório do lobista de métodos heterodoxos. O que faziam ali? Por que despachavam dali? Em busca dessas respostas, VEJA descobriu que a sala foi cedida a Lulinha e Kalil como parte de um acordo dele com a francesa Arlette Siaretta, dona do grupo Casablanca, um conglomerado de 54 empresas que, entre outras atividades, faz produção de filmes e eventos, gravação de comerciais e distribuição de DVDs.

Em 2002, Arlette Siaretta e APS se tornaram sócios num projeto de transmissão de imagens digital via satélite. Desde então, a mansão do lobista passou a funcionar como filial informal da empresa Casablanca em Brasília. "Ela me pediu a sala e eu cedi", diz APS. Mas por que a Casablanca teria interesse em instalar Lulinha e Kalil em sua filial informal em Brasília? Apesar de ser dona de metade do mercado de finalização de comerciais no país, Arlette Siaretta tinha um problemão no início do governo de Lula. Ligada ao PSDB e produtora das últimas três campanhas presidenciais tucanas, a empresária encontrou no PT uma muralha que lhe barrava negócios com o governo federal e as estatais, até então uma de suas grandes fontes de receita. Arlette Siaretta precisava de alguém para lhe abrir as portas do governo.

No fim de 2003, o sócio de Lulinha apareceu em seu escritório, em São Paulo, prometendo exatamente aquilo de que a empresária precisava – portas abertas. "Você tem uma grande empresa. Eu tenho acesso às pessoas que decidem. Podemos ganhar dinheiro juntos", teria dito Kalil, conforme o relato feito a VEJA por uma testemunha do encontro. Arlette Siaretta adorou a idéia. Fecharam negócio: Kalil receberia 5% das transações no governo que a Casablanca conseguisse por seu intermédio. Não poderia haver escolha melhor. Os "meninos" do presidente entregaram o que prometeram. Pois bem, Siaretta continuou tendo no governo petista a mesma participação que tinha no mercado nos oito anos dos tucanos, algo em torno de 50% de todos os contratos de filmes feitos para as empresas de publicidade que prestam serviço ao governo.

Não se sabe por que Arlette Siaretta confiou em Kalil. Procurada por VEJA em cinco oportunidades, a empresária não quis dar entrevista. Sabe-se, porém, que uma das melhores credenciais de Kalil para dizer-se influente foi sua proximidade com Lulinha – que, registre-se, não esteve presente na negociação com Siaretta. A pedido de Kalil, a empresária até concordou em trabalhar com Alberto Lima, conhecido como Beto Lima, amigão de Kalil (há quinze anos) e de Lulinha (há nove anos). Dono de um bar em Campinas que falira em agosto de 2003, Beto Lima passou a despachar diariamente na sede da Casablanca, em São Paulo. Siaretta mandou imprimir cartões de visita com seu nome e a custear suas despesas com passagens aéreas e hospedagem no triângulo São Paulo–Brasília–Rio de Janeiro. Assim como Kalil e Lulinha, Beto Lima também passou a usar o escritório de APS em Brasília, que lhe servia de apoio para suas visitas às principais agências de publicidade que trabalham para o governo e para estatais. Beto Lima dá sua versão: "Minha função é prospectar novos negócios para a Casablanca. Usei o escritório como base operacional, apenas para dar e receber telefonemas".

Em julho de 2004, a turma deu uma grande exibição de sua influência para Arlette Siaretta. O cineasta Aníbal Massaini Neto, diretor de Pelé Eterno, um documentário sobre a vida do craque, queria exibir seu trabalho ao presidente Lula, mas não conseguia romper o bloqueio. Arlette Siaretta, que produziu o filme, colocou em movimento sua engrenagem: acionou Beto Lima, que acionou Kalil, que acionou Lulinha – que marcou uma sessão de cinema no Alvorada com a presença do pai. A exibição aconteceu na noite de 13 de julho de 2004. Depois, houve um jantar, com arroz, feijão, peixe e farofa, além de uísque e charutos cubanos. Estavam todos lá: Lulinha, Kalil, Beto Lima, além de Siaretta. A certa altura, já empolgado, Lula fez um discurso no qual começou afirmando admirar duas pessoas na vida. A platéia apostou que uma seria Pelé, o astro do filme e presente à festa. Mas não. Lula disse que admirava Abraham Lincoln e – tchan, tchan, tchan, tchannn ­ Kalil Bittar. Era a gratidão por tudo de bom que Kalil já fizera por Lulinha. A empresária Arlette Siaretta ficou muito satisfeita com o resultado do jantar, pelo acesso que conseguira e pelo prestígio de seus colaboradores.

Lulinha e Kalil mantêm-se mergulhados no mutismo sobre a real dimensão dos negócios e interesses que ajudaram em Brasília. Não falam também sobre seus despachos na sala ao lado da do lobista APS, bem como sobre suas andanças por empresas privadas e gabinetes federais. O assessor da dupla, procurado por VEJA, conversou com a revista. Disse que Kalil esteve na mansão do lobista APS, mas que Lulinha jamais colocou os pés lá. APS desmente o assessor de Kalil e Lulinha. Ele confirma que o filho do presidente despachava no escritório cedido por ele. Quando VEJA quis saber sobre outros detalhes, o assessor disse que Lulinha e Kalil não prestariam nenhum esclarecimento adicional. As investidas de lobista de Lulinha em Brasília e suas conexões empresariais merecem um esclarecimento mais pormenorizado. Todo pai tem direito de ver no filho um Ronaldinho e na filha uma Gisele Bündchen. Da mesma forma é vital tentar entender o mistério por trás de certas transformações extraordinárias dos filhos de presidentes, em especial quando elas ocorrem durante o ápice de poder dos pais.

O lobista mais enrolado da República


Fotos Ana Araújo
aújo
BIOGRAFIA LONGA
O lobista Alexandre Paes dos Santos, o APS, que hoje despacha numa mansão de quatro andares: corrupção, contrabando, pagamento de propina...

O lobista Alexandre Paes do Santos é homem de relações perigosas e de uma vasta ficha criminal. APS, como ficou conhecido em Brasília, fez carreira – e, posteriormente, fama policial – no submundo das negociatas da Esplanada dos Ministérios, aproximando-se de raposas da política e cultivando a imagem de personagem misterioso e poderoso. As estripulias de APS nas sombras de Brasília vieram a público em 2001, quando a Polícia Federal apreendeu a agenda do lobista. Ali, escondia-se o inventário das atividades subterrâneas de APS, como pagamentos de propinas a parlamentares e funcionários do governo, histórias de chantagens e esquemas de superfaturamento em contratos com órgãos públicos. Minucioso e detalhista, o lobista anotava na agenda valores de suborno ao lado da letra "K", que os investigadores descobriram tratar-se de um código que correspondia ao acréscimo de três zeros ao valor registrado. Ao lado de nomes de deputados e servidores públicos havia, por exemplo, a inscrição "50K" (ou 50 000, reais ou dólares).

O escândalo foi um golpe para o lobista. Ele perdeu seus trinta clientes e passou a responder a três inquéritos da Polícia Federal, por suspeitas de corrupção, contrabando e tráfico de influência – investigações que se mantêm até hoje. Apesar da turbulência e da notoriedade, APS conseguiu se reerguer. Recuperou boa parte dos clientes e voltou a despachar numa espaçosa mansão, com quatro andares e elevador. Mas o sossego de APS pode durar pouco. Um de seus clientes, a Telecom Italia, está enrolado numa investigação de promotores de Milão, na Itália. Eles apuram a existência de um caixa secreto da Telecom Italia, que seria usado para pagar propina a autoridades de vários países – inclusive, é claro, do Brasil.